sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Manoel de Barros


Manoel de Barros é fabuloso! Por isso mesmo não vou falar da sua estética ou das qualidades imponderáveis de sua escrita, mas deter-me-ei sobre o que vale a pena: o cidadão.

Manoel de Barros surgiu no Mato Grosso, mais precisamente em Cuiabá, no ano de 1916. Foi criado em rancho simples, menino do mato, da terra, quase que indissipado desta mesma, exceto pela alcunha de ser humano. Com certos anos foi estudar na cidade... com outros mais aderiu a movimentos sociais inda quando Vargas era lei neste país. Morou com índios na Bolívia e retomou sua vida de labuta lá pelos 50 anos de idade afim de comprar sua vadiagem (parafraseando-o), coisa que aparentemente conseguiu após uns 10 anos como boiadeiro nos confins do Centro-Oeste. Removeu-se para algum lugar e de lá hoje ainda procede na sabedoria de ser simplesmente humano. Neste ínterim, escreve poesia.

Carlos Drummond de Andrade, assim como eu, achava que esse macuco é o melhor poeta...melhor de todos - sem cerimônia.

Seu primeiro escrito publicado em 1937 já esboçava o único fator relevante em qualquer poesia dele: a memória afetiva pela "coisa" viva, ou pelo vivificar da coisa ou ainda pelo coisar qualquer coisa. A simplicidade das palavras só não é maior que o homem por detrás delas, como vemos um exemplo deste primeiro desfeito poético:

"No Recreio um menino que não brincava com outros meninos
O padre teve um brilho de descobrimento nos olhos
 - POETA!
O padre foi até ele:
 - Pequeno, por que não brinca com os seus colegas?
 - É que estou com uma baita dor de barriga desse feijão bichado."
(Poemas Concebidos sem Pecado - 1937 - 5.)

Ainda, pra que se entenda um pouco mais:

"Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada" (1989)
...
V.
Escrever nem uma coisa
Nem outra - 
A fim de dizer todas - 
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar - 
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes"

Durante os tempos de labuta Manoel foi escrevendo... e criando maravilhas... surgiram os "Arranjos para assobio", "Livro das Pré-Coisas", e o magistral "Compendio para uso dos Pássaros", mas foi cerca de 52 anos após seu primeiro livro que a genialidade (ao meu ver) tocou a alma deste ser na sua forma mais profunda. É quando Manoel reconhece a figura ímpar: Bernardo da Mata. Deixemos as palavras dele por primeiro às minhas:


"Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rás o exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto - e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso
para dentro de um oco... E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde -
Como a foz de um rio - Bernardo se inventa...
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem."



Bernardo da Mata é a própria emanação do "eu" de Manoel (na foto). Ali ele enxerga, meio a simplicidade campeira, sertaneja, a jazida que tanto lhe produziu versos brilhantes. Na realidade Bernardo foi um dos peões da fazenda de Manoel. O mais matreiro, o mais próximo da terra, aquele com quem até os insetos conversavam, em quem pássaros pousavam, um ser humano além do humano, parte integral da natureza a ponto de obter respeito dela. Coisas que somente o transcendental explicaria: como o poeta encontrou-se com sua poesia viva, vivificada, coisada e sobretudo humana. Tipica coincidência sincrônica que acontece em vida...quase como o evangelista se visse o próprio Cristo viver em sua frente.

"O Guardador de Águas" (1989) é um memorando da natureza que convém apreciar. O primeiro verso já explica o teor dos demais: 

"O Aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase coberto de limos - " (1996)

Conheci Manoel num dia daqueles que liguei a TV e logo na Cultura passou algum tipo de especial sobre ele...lembro-me bem de filmagens com ele na fazenda e Bernardo da Mata, caboclo, nas proximidades. Foi que me chamou a atenção na época. Infelizmente esse programa nunca encontrei ou vi novamente. Existe um documentário "Só 10 por cento é mentira" que não recomendo - é péssimo, exceto pelo próprio Manoel falando um pouco e lendo poemas. Aliás, muito do que se lê por ai sobre ele é besteira pura, coisa de acadêmicos que não sabem nada de arte; ou tentativas de distorção da obra original do mestre. 

Recomendo - isso sim - todas as leituras dele. Seu ultimo foi lançado em 2010: "Menino do Mato". A editora Leya lançou (finalmente) um "Poesias Completas" em 2010 que consegui adquirir para meu deleite e prazer.

Vou deixar aqui um ótimo, de 1996 "Livro Sobre Nada"

"Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
um abridor de amanhecer
um prego que farfalha
um encolhedor de rios – e
um esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada). Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)"


Grande Manoel, agradecido pelas palavras. Por mim tu pode ficar aqui mais 100 anos que tá de bom porte.

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